terça-feira, 31 de maio de 2011

Lourenço é Nome de Jogral - Fernanda Botelho

Gosto de fazer corpo com a noite e solidarizar-me com a sua sinistra mitologia. Enrolar-me em trevas, para que as trevas do meu corpo ressurjam multiplicadas e eu deixe de saber onde começo, onde acabo – densa e ilimitada – ,  eu e os gnomos das sombrias florestas, alegres oficiantes das minhas cerimónias nupciais.


A meu ver, foi essa tua desinibição que intrigou Luzinha: esperta como era, adivinhou em ti um exemplar duma espécie para ela desconhecida; e tu bem sabes como era ávida de novidades.

Eu esperava este momento de exaltação, desde o dia em que me mandaste embora. Eu esperava talvez que me mandasses embora – eu ou os meus diabos, – por isso contei tudo ao Luís. Exijo o sofrimento com a mesma fúria com que procuro a exaltação, quero que a vida a cada momento se abra em cratera ou em lagoa, e eu saiba que em mim todas as vibrações da terra deixaram marca, e é um mapa estranho, cravejado de alfinetes e desdobrando-se em cores, aromas, música. Compreenderás isto? Claro que compreendes. A minha vocação era a de te encontrar para me esclarecer. Eu andava, malograda e desnorteadamente, à procura duma nascente de sabedoria. Não foste a nascente. Eu receava da minha juventude a incapacidade e o erro. Não me desmentiste. Eu aspirava a certezas, e tu eras a dúvida. Por isso mesmo. Nós estávamos certos. E, por isso mesmo ainda, ao ver-te pela primeira vez, reconheci-te.

- É um bocado confuso, não é? E, no entanto, eu vejo tudo com a maior clareza. É como se eu andasse à sua procura, sem saber como, nem quem, sem saber mesmo que procurava. E então vejo-o, e penso: ei-lo! Assim, sem mais nem menos.


Agarro-me ao teu pescoço e enrosco-me em ti: nasci com esta vocação de me adaptar ao teu corpo.

BOTELHO, Fernanda. Lourenço é Nome de Jogral

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