domingo, 17 de abril de 2022

O avesso da pele - Jeferson Tenório

 

A PELE

1 A ausência do meu pai, professor. Os seus objetos, na sua casa.
2 O aluno vomitou em você. Você tem 30 anos. Aos 12 anos sentiu ansiedade por tudo e por nada. Aos 18 tinha uma úlcera no estômago. Aos 14 foi preso por engano. Você é  negro. Uma máquina de dar aulas. Juarez, seu amigo de infância, vendia droga com o irmão. Aos 52 anos você vive sozinho, sem ter sabido manter Elisa consigo.
3 O seu namoro com as duas brancas: Juliana e Suellen. O crescimento da sua consciência de que há racismo. A seguir você conheceu minha mãe.

O AVESSO
1 Tenho 22 anos. Você e a mãe não foram feitos um para o outro. Quando fui concebido, você e minha mãe estavam separados e juntaram-se novamente. Minha mãe perdeu mãe e pai com 10 anos e foi adoptada por Madalena, mãe solteira de Flora, concebida por Rubão.
2 A minha mãe era muito ciumenta e você dificilmente a suportava.
3 A educação cheia de percalços de Flora e Martha, minha mãe, crianças.
4 5 Minha mãe do namoro com o Vitinho.
6 A morte de seu pai, que o abandonou com 1 ano. A sua meia-irmã Isabel.
7 Você e minha mãe: ambos negros mas pouco compatíveis, exceto sexualmente.
8 Minha mãe se casou com Vitinho. Pouco a pouco, passou de tempos felizes para criada da família dele.
9 Você, Henrique, meu pai, e Martha, minha mãe quase se separaram antes de eu ser concebido. Você receou pela fragilidade de minha mãe.
10 A sua ansiedade começou nos seus 12 anos: em Porto Alegre, com sua mãe e irmãs, na casa de sua avó, com o rottweiler Urso, a prima Violeta, o tio polícia Zé Carlos e o tiro com que quase matou a mulher.
11 Primeira discussão violenta de Vitinho com minha mãe, no primeiro casamento dela.
12 Eu chamo-me Pedro. Quando conheci Saharienne. Perdi a virgindade aos 17 anos, com a Tamires, de 15 anos. Os pais de Saharienne convidaram-me para jantar, mas ela saiu com um amigo. 
13 Minha mãe foge do casamento com Vitinho e vai para Porto Alegre. Entra na faculdade.
14 Você se separa de minha mãe, superprotetora, ciumenta e neurótica. Eu, sufocado por ela, e desejando passar mais tempo consigo, fui crescendo sozinho.

DE VOLTA A SÃO PETERSBURGO
1 A escola e os pais venceram o otimismo do professor: você tornou-se um indiferente.
2 No seu último ano de vida você começou a trabalhar numa escola à noite. Suas turmas eram de jovens e adultos. Um fracasso.
3 Você e Elisa. Ela era casada, com dois filhos quase maiores, sem um peito, com um marido que já não lhe tocava. Vocês se apaixonam.
4 As abordagens que a polícia fez a você, ao longo da sua vida. A adoração pelo livro “Crime e Castigo” e o regresso à leitura, a São Petersburgo, depois de cada frustração social.
5 Você com 52 anos, farto de dar aulas inócuas e já sem o amor de Elisa.

A BARCA
1 O polícia acorda às 3h30 e agarra na pistola quando deteta a presente vultos na   lavandaria da casa a mulher e os dois filhos dormem.
2 Você para captar a atenção deles diz aos seus alunos que vai levar à aula um homem que matou dois homens para ele contar o que pensou antes e depois de matar.
3 O polícia afinal sonha que acorda e tem a casa invadida por negros.
4 Você chega à aula e o homem de quem falou é Raskólnikov de “Crime e Castigo” e mantém os alunos curiosos com a leitura de excertos. Um aluno, Peterson, fica especialmente curioso para saber que castigo vai receber Raskólnikov.
5 O polícia acorda às 5h. Os pesadelos atormentam-no ainda. Hoje há de encontrar o filho da puta que matou o cabo Maicon.
6 Peterson diz no caminho para o ónibus que bandido que mata para roubar não se arrepende como o Raskólnikov.
7 O polícia faz abordagens a negros na rua e no bairro para ver se descobre o filho da puta que matou o cabo Maicon.
8 Enquanto planeia novos livros para levar para a aula a polícia mata você no passeio porque não parou quando o mandaram parar.
9 O seu funeral e as vítimas do racismo e as palavras de incentivo da minha tia para que eu continuasse a estudar.
10 Escrevo esta história para me curar e para denunciar o racismo que te vitimou, meu pai.

Sem comentários:

Enviar um comentário